“Dei-vos o exemplo para que,
como eu vos fiz, também vós o façais”
CARÍSSIMOS IRMÃOS,
iniciamos a Semana Santa com o Domingo de Ramos. E na oração coleta rezamos: “Pai todo-poderoso, que destes aos homens um modelo no teu Filho feito homem e humilhado até à morte na cruz, concedei-nos que, conservando presente o ensinamento da sua paixão, possamos participar da sua Glória”.
É belo, muito belo, saber – neste tempo em que por um lado se sente uma grande necessidade de pessoas sobre cujos passos modelar a própria vida e, por outro, há tantos ídolos que nos são propostos em todos os campos – é belo ver que Deus Pai nos oferece um modelo verdadeiro: seu Filho.
Exatamente amanhã, sexta-feira santa, no raconto da Paixão segundo o João, ouviremos Pilatos que – mostrando Jesus flagelado, coroado de espinhos e escarnecido com um manto de púrpura – diz à multidão: “Ecce homo” (Jo 19,5). “Eis, o homem”. Eis o Filho de Deus encarnado, o Rei-servo, o novo Adão, o novo homem, o modelo fontal de toda pessoa humana.
É claro que sentimos uma como repulsa psicológica, diria, quase, uma repugnância visceral na presença de um tal modelo de homem. A nossa imaginação nos leva a pensar em outro modelo que imitar: o homem vencedor, exitoso, rico, atraente. Acontece-nos de assumir exatamente a mesma atitude que adotamos perante a cruz, onde nos resulta “uma palavra dura” a de pensar e aceitar um Deus-Crucificado, porque as nossas idéias sobre Deus não se harmonizam com essa revelação. Entretanto, foi o Pai que nos deu esse modelo: “o seu Filho feito homem e humilhado até à morte de cruz”.
Isto quer dizer que não há outro caminho para alcançar a plenitude humana senão a do amor levado até ao fim, até ao extremo de entregar-nos pelos outros, qualquer que seja a nossa condição de homens ou mulheres, de consagrados ou leigos, de adultos ou crianças. Este é na verdade o desígnio de Deus: o mistério da Páscoa, que é mistério de morte e de vida.
A aceitação sincera e existencial do modelo oferecido pelo Pai é um dom de Deus. Por isso lhe pedimos ‘a graça de ter sempre presente o ensinamento da sua Paixão para participar da sua Glória’.
E hoje, quinta-feira santa, é o mesmo Senhor Jesus que se nos apresenta como mestre: “Se portanto eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós…”. Hoje recebemos de Jesus o seu mandamento: “Dei-vos o exemplo para que, como eu fiz, assim façais também vós”.
Somos convidados a fazer da nossa igreja o Cenáculo, símbolo e prolongamento daquele mesmo Cenáculo em que Jesus, reunido com os seus discípulos, celebra a Páscoa e sigila a nova aliança. Reentremos com enlevo e reverência para este recinto sagrado, todo impregnado da mais intensa atmosfera de intimidade. É a última ceia. Jesus faz o memorial da Páscoa de Israel, mas a atualiza na própria vida: dá-lhe um novo sentido e o total completamento. De agora em diante não mais significará a libertação social de um povo resgatado da escravidão no Egito, mas a salvação total de todos os homens e mulheres do mundo na morte de Jesus. Aquela era um símbolo: esta é a realidade.
Nesse contexto de despedida Jesus, o Senhor, o Mestre, cumpre dois gestos que Ele mesmo explica:
Antes de tudo, o lava-pés dos seus discípulos. O modelo que o Pai nos apresenta é o do Filho de Deus que se torna servidor dos homens. “Eis o homem”.
Jesus chegou a definir a própria existência com a palavra "serviço" quando, falando aos discípulos que discutiam sobre quem fosse o maior entre eles, disse: “Para isto eu vim: para servir e dar a minha vida como preço de resgate para muitos” (Mc 10, 45).
Servir é um projeto completo de vida que abraça a totalidade da existência. Não é uma fase da vida. Nem uma função. Trata-se de uma compreensão da vida não centrada no sucesso pessoal, no crescimento profissional, na realização do projeto pessoal. Mas concentrada no abandono, a fim de que seja o Espírito o guia da nossa vida, e, portanto, no autodevotamento. “Ninguém me tira a vida: sou eu que a ofereço livremente” (Jo 10,18).
Servir é uma escola de vida: algo que é preciso aprender. Leva-nos a valorizar os outros por aquilo que são, por aquilo que esperam de nós, e não por aquilo que nós quereríamos que fossem. Significa compreender os ritmos e a história das pessoas a quem nós somos mandados. Significa, simplesmente, fazer nossa a atitude do “bom samaritano”, que vê a necessidade de quem está caído à beira da estrada, abandonado e em péssimas condições; que se lhe avizinha cheio de misericórdia; que a ele se achega, o soergue, cumula de atenções; e por ele se responsabiliza (Lc 10,30-37).
Servir quer dizer responsabilizar-se pelos outros, superando a tentação e o pecado de Caim: “Sou por acaso eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9b). Significa não desinteressar-nos por aquilo que acontece àqueles que vivem conosco, àqueles que nos foram confiados. Significa ao contrário sentir–nos chamados a dar o melhor de nós, a oferecer soluções, sobretudo quando as pessoas – com ou sem razão – se sentem destratadas, malferidas, ressentidas, frustradas, totalmente desalentadas.
Servir, portanto, significa cuidar mais das pessoas que das coisas ou das estruturas. É esta a conotação que traz em si a palavra “resgate”: alguma coisa que é preciso pagar para libertar um familiar e retornar-lhe a liberdade perdida.
“Ecce homo”. Eis o nosso modelo nesta sociedade tão necessitada de passar da criação do “Homo consumens” à gestação do “Homo serviens”.
Outro gesto, tão mais sublime quão inimaginável, mas que leva à plenitude o primeiro, é a Instituição da Eucaristia, onde Jesus se torna pão partido para nós e vinho derramado para nós.
É impossível não ficar admirados, fascinados mesmo, pelo amor dAquele que, para doar-nos a vida, fez da sua carne alimento de vida eterna e, do seu sangue, bebida de salvação.
A sua encarnação atinge o seu ápice nesta “fantasia” divina. O Filho de Deus não se fez homem somente para tornar visível a sua dependência filial do Pai: “Eis que vim para cumprir a tua vontade” (Hbr 10,9) e cumprir o seu desígnio de salvação; ou para mostrar a sua solidariedade conosco compartilhando em tudo – exceto o pecado – a nossa natureza e condição humana, frágil. Mas fez-se homem também para fazer da sua carne e do seu sangue o nosso alimento e comunicar-nos a sua vida divina, e transformar-nos em Si.
A sua palavra de ordem “fazei isto em memória de mim” não se reduz por isso ao ato litúrgico, tal como no-lo transmite Paulo no texto da primeira carta aos Coríntios; mas prolonga-se e se comprova em nossa capacidade de entregarmos a nossa própria vida para que os outros tenham vida em abundância: em fazer-nos eucaristia.
Não poderemos celebrar dignamente a Eucaristia enquanto não nos empenharmos, até ao fundo, em destruir todas as barreiras que dividem as nossas famílias, as nossas comunidades, a nossa sociedade, o nosso mundo. A Eucaristia é sinal e sacramento de comunhão: celebra-se enquanto nos tornamos construtores de comunhão em obediência a Jesus que veio destruir o muro que separava os homens e reconstituir na unidade os filhos de Deus dispersos. “Eis o Homem”, o nosso modelo nesta sociedade tão necessitada de comunhão e de amor para superar o egoísmo, a inveja e o ódio, que estraçalha a humanidade em intermináveis guerras, lutas de raça, conflitos interétnicos, segregação sexual, exclusão dos pobres.
Se é verdade que quanto mais se viver em comunhão e quanto mais concreto for o ritmo da vida, tanto maiores serão as exigências e, portanto, as dificuldades da vida comunitária e familiar – é também verdade que é preciso um espírito de ampla e mútua misericórdia, uma notável capacidade de perdão e de reconciliação, como única possibilidade para manter vivo o ideal que propôs o Senhor Jesus.
É preciso aprender a ser hospitaleiros, a abrir as portas da nossa tenda e das nossas obras, a acolher as pessoas (os jovens), a fazê-las sentir-se em casa, a ouvi-las, a encorajá-las, a perdoar-lhes, e não só a capacitar-se em avaliar programas, em adaptar projetos, em potenciar recursos. O amor cristão é uma arte que se aprende na escola de Jesus, no Cenáculo, na Eucaristia.
Isto implica a vontade de:
– amar a todos, sem fazê-lo em base a simpatias ou antipatias, ou a pertenças étnicas diferentes;
– amar por primeiro, dando sempre o primeiro passo, indo por primeiro ao encontro dos mais afastados, sem pretender ser procurados ou reverenciados ou fazer-nos procurar;
– amar como a nós mesmos, segundo a “regra de ouro do evangelho”, que nos convida a tratar os outros como nós mesmos queremos ser tratados (cf. Lc 6,31);
– amar solidariamente, carregando os pesos uns dos outros, sofrendo com os que sofrem e alegrando-nos com quem se alegra (cf. Gl 6,2; 1Cor,12,26);
– amar também o inimigo, aquele que não pensa como nós ou, quiçá, deseja também o nosso mal;
– amar bem, aprendendo a renunciar a nós mesmos contanto que se chegue à unidade.
A Eucaristia, que se celebra na Igreja, prolonga-se e se comprova na concretude da vida de comunidade e de família enquanto se constrói a comunhão, que se torna profecia.
Tudo isto sintetiza-se no mandamento do amor que Jesus nos deixa como marca distintiva dos seus discípulos: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,34-35).
Neste clima de intimidade, quase inefável, em que são mais eloqüentes os gestos do que as palavras, Jesus nos oferece a chave de leitura de toda a sua vida e de quanto acontecerá no dia seguinte, quando for crucificado.
Lava-pés, instituição da Eucaristia, mandamento do amor – estes os traços do homem novo, do modelo que o Pai nos deu no seu Filho encarnado e humilhado até à morte de cruz para participar da glória. Eles devem caracterizar a nossa vida e devem ser a nossa profecia. Eles devem transformar as nossas famílias e as nossas comunidades até torná-las fermento de reconciliação, de unidade, de amor e de paz em nosso mundo.
O Pai, que nos reuniu para celebrar a santa ceia, na qual o seu único Filho, antes de se entregar à morte, confiou à sua Igreja o novo e eterno sacrifício como banquete nupcial do seu amor, nos conceda pela participação em tão excelso mistério chegar à plenitude da caridade e da vida.
P. PASCUAL CHÁVEZ VILLANUEVA