“Faça-se em mim segundo a Tua Palavra” Lc 1,38)
Para quem nasce e vive na fé, tudo provém do Evangelho.
A família de Zenon Rino e Maria Modesta, gente de fé provada no dia-a-dia da lida do trabalho, dos compromissos inerentes à situação social, de pertença a uma comunidade civil e religiosa-paroquial ao mesmo tempo; a escola onde a educação motiva a instrução: eis o berço da fé que afagou a infância e a meninice do nosso querido Franco. Tudo refletia luzes e cores de profunda humanidade, de sentido da pertença a Deus, de crescer para depois fazer tanta coisa bonita…
Assim a Palavra se manifestava à mente e ao coração vivaz do garoto, que a assimilava e a transformava em energia de caráter e força de vontade. Foi natural portanto, que ao terminar o curso primário, desejasse entrar não no seminário diocesano, mas no aspirantado missionário de Penango (Piemonte – Asti). O mais próximo do lugarejo onde a Família Dalla Valle oriunda do Veneto, se estabelecera em busca de melhores condições de vida.
É de se notar que a Congregação Salesiana por iniciativa do Bem-aventurado Pe. Felipe Rinaldi secundado depois pelo Pe. Pedro Ricaldone, mantinha no Piemonte uma rede de aspirantados missionários, com o objetivo de preparar jovens vocacionados à vida missionária salesiana. Então a mística que pervadia os ambientes desses aspirantados era altamente contagiante – os superiores, os professores, os mestres e confessores, em grande parte já missionários ou formados à escola de salesianos próximos à pessoa de D. Bosco em vida, transmitiram com entusiasmo a beleza da vida salesiana e a aspiração de se dedicar com ardor à ação missionária.
Em meio século a Congregação Salesiana cresceu, se desenvolveu pelo mundo afora, seja em número de salesianos como em obras a ponto de gerar até uma certa apreensão por parte dos superiores do Conselho Geral; por sinal bastante justificável, ao perceberem uma sensação de inchaço e queda de vigor.
“Faça-se em mim, segundo a tua Palavra” a Palavra é de Deus e a adesão a Palavra do homem.
Franco aderiu decididamente a esta Palavra. Já nos últimos anos do aspirantado manifestava seu forte espírito de liderança e de uma espécie de contestação que, levavam os formadores a temer pela sua perseverança na vocação. Ainda bem que souberam avaliar tal fenômeno caracterizado mais pelo impulso juvenil e um tanto intempestivo, que aos poucos iria se equilibrando através do amadurecimento.
D. Aldo Olioso, professor de letras naquele tempo no aspirantado de Penango, guarda ainda agora com carinho e orgulho algumas tarefas escolares (redações) dos seus melhores alunos, entre eles o Franco Dalla Valle.
Em 15 de agosto de 1962, Franco entra no noviciado de Villa Moglia.
D. Beniamino Listello, salesiano de alto quilate, que depois na atuação do Projeto África teve um papel relevante, foi seu mestre de noviciado. Então, ao final do noviciado fez o pedido para a primeira profissão, a que seguiu o pedido para ser enviado às missões.
Em Foglizzo de 1963 a 1967 era preciso estudar e estudar muito, pois lá ninguém podia brincar na corda bamba. Mas, havia momentos bons de recreios, passeios passa-tempo. Para Franco o melhor passatempo era no apiário que o veterano missionário D. Ernesto Foglio cuidara com todo esmero até a morte. Para substituir o dito Padre em tão elevada função, foi escolhido o Franco (quem sabe porque?!?) e mais outro colega que não se agradou com algumas ferroadas de abelha e desistiu.
O Franco se tornou então dono absoluto do sítio. Com paixão, espírito de criatividade e alegria fez funcionar o apiário até o fim do seu período em Foglizzo. Estava prestes a iniciar o seu tirocínio prático quando renovou a profissão religiosa para o 2º período (de três anos) e foi enviado para o mais antigo e maior aspirantado missionário: Ivrea. Agora era assistente dos aspirantes e professor. Porém, ele aguardava com sofreguidão a carta de envio para as missões. O mundo em volta dele sempre fora e continuava a ser demasiado pequeno; precisava de algo mais, maior, amplo, incomensurável – Só poderia ser a Amazônia. Foi por isso, que no início de 1969 ele apareceu aqui em Manaus, sorridente, feliz da vida – “Agora vamos trabalhar juntos” repetia com freqüência e ar de satisfação.
A vida missionária por si mesma é uma grande aventura; mas, há situações e fatos que lhe dão um toque mágico, de algo que se explica só no entendimento daquela PALAVRA que a gente está levando em si.
Ananindeua é a 1ª experiência “missionária” do Cl. Franco Dalla Valle – O ambiente, a natureza em volta, como se apresentava naquele tempo, devia mesmo dar-lhe a impressão de estar numa missão. Aprendeu rápido o português, coisa que já tinha iniciado em Silvânia, onde ficara algum tempo junto com outros recém-chegados, para se aclimatar e receber as noções mais importantes sobre o Brasil e a vida salesiana neste imenso continente (a iniciativa desse estágio inicial partiu do Pe. Daniel Bissoli, então Inspetor Salesiano da ISMA).
Aí está. Terminado o ano em Ananindeua e feita a Profissão Perpétua em 15/08/1969, o Franco volta à Itália, Castellamare di Stabia, para iniciar o curso de Teologia.
Apresenta-se em vestes de clérigo missionário experiente e cativante que irradia simpatia e admiração pelas missões. Nas férias de 1971 retorna ao Brasil acompanhando a equipe cinematográfica dos irmãos Coad. Spiri, Saglia e Notário, encarregada de realizar um documentário sobre as atividades missionárias do Pe. Antonio Góis no Caaboris (assim eram chamados o lugar e os índios de Maturacá naquele tempo, depois é que surgiram os nomes de Ianomami e Maturacá) no sítio onde fora implantada a primeira residência missionária. Esse documentário devia ser a colaboração que a ISMA iria prestar à celebração centenária do início das missões salesianas em 1975.
A febre malárica que serpeava por lá botou a dura prova a saúde e a vida do nosso Franco. Foi preciso solicitar de urgência um avião da FAB para que fosse transportado as pressas para Manaus. Foi um momento de forte preocupação para podermos resolver a situação realmente preocupante, do jeito que se encontrava.
No fim tudo se resolveu em boa forma, e o Franco regressou com sua turma para a Itália, com uma experiência a mais de vida missionária “no toco da árvore”, como se costuma dizer.
Mas, em Roma estava em caminho o CGE XX e lá se foi o nosso jovem teólogo a exercer o ofício de tradutor oficial nas sessões plenárias do Capítulo. Foi maravilhoso: viu, escutou, transmitiu assuntos importantes e vitais daquele grande evento. Fez muitas amizades entre os salesianos participantes. O jovem clérigo adquiriu uma visão mundial da Congregação e da sua complexidade.
“Faça-se em mim segundo a Tua Palavra”. Tudo isso haveria de render na vida pastoral de educador, formador e superior.
Em 26/08/1972, com alguns meses de adiantamento sobre o previsto Pe. Franco é ordenado sacerdote no templo do Colle D. Bosco, o lugar mais bonito e significativo da nossa salesianidade, junto com o Oratório e a Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora (em Turim). Uma vez regressado ao Brasil, neste meio tempo o Pe. Franco fez mais uma experiência missionária muito positiva que encheu a sua alma de grande emoção. Veio a Iauareté e acompanhou o venerado Bispo Mons. Marchesi numa viagem ao Alto Rio Uaupés, rico de cachoeiras imponentes, com muitos povoados pontilhando as margens do percurso – Iriam ao povoado de Assaí habitado por índios cubéuos com objetivo de levantar uma capela. Tudo era fascinante (geralmente é assim a primeira vista!). Mas o que mais fascinava o jovem padre era o exemplo do velho Bispo com os seus 80 anos subindo numa pequena escada improvisada, para subir no telhado da capela em construção, dando as dicas ao pessoal para dizer como deveriam fazer, ele mesmo com martelo na mão pregando ripas e travessas como se nada fosse; o dia inteiro debaixo do sol, molhado de suor e repetindo de quando em quando: “já, já”. E mais vislumbrante, à tardinha depois de ter tomado uma tigela de sopa, sentar no banquinho, com a vela acesa ao lado, fazer a oração antes de desfrutar o merecido descanso pelo trabalho do dia.
Isso para o nosso Pe. Franco valeu mais que um livro de contos missionários, e de volta a Iauareté não cansava de repetir encantado: “Que coisa extraordinária! Um Bispo daquela idade com tanta energia!” E continuava tecendo os particulares daquele primeiro impacto de vida missionária na sua realidade, para dizer o quanto era sensível a tudo que lhe falasse de almas, de apostolado, de sacrifício pela glória de Deus.
As bonitas impressões colhidas em seus primeiros contatos com as missões do Rio Negro, a saber: as atividades dos missionários, a juventude numerosa nas escolas, as comunidades indígenas em franco desenvolvimento (escolinhas rurais, o artesanato variado: redes, tapetes, esteiras de tucum, banquinhos, objetos de madeira fina, etc.; as capelas acolhedoras e os catequistas bem atuantes) tudo isso levava o Pe. Franco não só a falar das missões, mas também a estimular outros a se inteirarem dessa maravilhosa realidade. Por isso, como formador e diretor de aspirantados, e mesmo depois como Inspetor, enviava os mais voluntariosos entre os aspirantes ou jovens salesianos pós-noviços a visitarem e conhecerem diretamente as missões. Certamente pensava que no futuro a ISMA não precisaria tanto de pessoal vindo da Europa, já tendo elementos aptos daqui para levarem em frente a difícil tarefa das obras missionárias. Sabemos que tanto empenho e atenção ele manteve também como Bispo de Juína em relação aos grupos indígenas daquela região, até criando um pequeno museu dos Povos Indígenas.
Vê-se então que a mística missionária vivida por Dom Franco permeava a formação dos futuros salesianos da ISMA. A maioria deles está perfeitamente inteirada disso. E não foi por puro acaso a sua nomeação a primeiro Bispo de Juína, uma cidade cujo núcleo inicial fora fundado pelo inesquecível missionário salesiano Pe. Ângelo Spadari, e cuja área ainda se achava na fase inicial de catequização. Alguém adiantou que os quase dez anos de Pastoreio de Dom Franco valeram como se fossem vinte – Quem o conheceu intimamente, sabe que essa afirmação é verdadeira. Em pouco tempo realizou muito, mas o preço de tudo isso foi muito alto, custou-lhe o coração, isto é, o melhor que podia dar de si.
Também nisso, transpareceu a frase do Evangelho de Lucas “Faça-se em mim segundo a Tua Palavra”.
Dentro desta dimensão não quero deixar de lado o fenômeno dos sonhos. Quem vive sonha – a Bíblia fala de sonhos que se tornaram realidades – “Vossos jovens terão visões, vossos velhos haverão de ter sonhos” (At. Ap. 2,17). D. Bosco sonhava porque vivia intensamente e com toda convicção o que desejava fazer. Brincando, se diz que Dom Franco sonhava de noite para fazer de dia.
Para quem vive e acredita, é assim – Se Dom Franco era tão rico de criatividade e realizava, de acordo com o seu ânimo vibrante desde muito jovem, é porque ele vivia aquela PALAVRA que lhe imprimia a força e a capacidade de realizar. Isto explica a sua atividade fecunda no Campo da Pastoral Juvenil-Vocacional; na formação de futuros salesianos; no exercício sábio, mas intraprendente do seu Inspetorado.
Mesmo como Bispo, longe dos nossos olhares, mas perto no sentimento de afeto recíproco acompanhamos com alegria e satisfação suas belas realizações. Para ele, Juína era o centro do mundo, chamando a atenção para lá e ao mesmo tempo irradiando o bem feito ou para se fazer.
Assim eram também os grandes Bispos da Igreja e os grandes salesianos que conhecemos. Dom Franco é o mais recente exemplo de irmão, superior e pastor que nos deixou, mas não o menor.