Dentro do denso mosaico ou caleidoscópio de estados, culturas, línguas e ritos de que se compõe a Circunscrição Leste com sede em Moscou, desejo antes de tudo apresentar-vos um aspecto significativo e, a seguir, fazer-vos, digamos, uma revelação, inédita para a maioria.
1. O aspecto significativo é a existência, dentro da Circunscrição, da Delegação Ucraína ligada ao rito, fato único em nossa Congregação. Trata-se do rito bizantino-ucraniano, dito também greco-católico, ou uniata.
A Ucrânia possui um rico e variado patrimônio de experiência religiosa que, na história escrita, abarca o tempo de mil anos. Na prática, nenhum aspecto da vida cultural, política, e mesmo econômica, é compreensível sem considerar a relevância das Igrejas cristãs, da sua doutrina, cânones, práticas litúrgicas, espiritualidade comunitária e pessoal, cultura e costumes. Sabeis que o território ucraíno esteve primeiramente sob o domínio dos lituano-poloneses; depois dos austríacos; e por último dos soviéticos. Fixemos brevemente a atenção na Ucrânia (ou Ucraína) ocidental, chamada Galícia, onde principalmente se afirmou o rito greco-católico, que foi causa de muita tribulação, tanto para os ortodoxos quanto para os latinos, pelos quais ainda agora são chamados traidores ou ilegítimos, e olhados com rancor ou ironia. O período mais trágico para a Igreja greco-católica é o século XX, durante a dominação soviética, período de terror, perseguição, (forçadas) deportações. Ela pagou um tributo de morte e de sofrimento humano esmagador. É um período que testemunha uma tentativa consciente, premeditada, de destruir a cultura e cancelar a sensibilidade religiosa. Foi liquidada a Igreja, ab-rogada a união com Roma – que remontava a 1596 (daí deriva o termo uniata) – e submetida à obediência ao Patriarcado de Moscou. Tornou-se uma Igreja clandestina, obrigada a viver nas catacumbas. A história pessoal de cada ucraniano foi tocada por essas brutalidade e crueldade. As cicatrizes psicológicas e espirituais ainda não se fecharam de todo; isto explica o sentido patriótico dos ucraínos e a defesa encarniçada, por vezes fanática, do rito. Essa intensa sensibilidade está presente também nos salesianos.
E falemos de nós.
Remonta a 1930 o interesse da Sagrada Congregação dos Negócios Eclesiásticos Extraordinários, sob o impulso do Papa Pio XI, para que os Salesianos se ocupassem da formação profissional e formação à vida religiosa dos jovens de rito greco-católico. Desejava-se mesmo preparar uma província religiosa. Em 1932 partiu para Ivrea, Itália, o primeiro grupo de 10 jovens ucranianos. Desses dez, cinco se tornaram salesianos. Depois partiram outros: em 1937 (4 salesianos); em 1938 (6); e em 1939 (4) – num total de 19 salesianos, que trabalharão na diáspora.
Em 1991 a proclamação da independência e da liberdade religiosa permite aos salesianos ucraínos retornar à pátria. Em 1992 re-parte para a Itália, depois 60 anos de interrupção, o primeiro grupo de vocações locais depois do comunismo. Desde então, em 15 anos, quase 180 jovens iniciaram a caminhada vocacional: mais da metade entraram para o noviciado (na Itália, na Rússia, na Polônia, na Eslováquia). Chegaram ao sacerdócio, como salesianos, 16 (outros passaram à diocese.) Há em formação 12 clérigos, 4 noviços, 6 pré-noviços.
As esperanças eram muitas, como se vê pelos números iniciais. Também no clero local viram-se números surpreendentes: num seminário em 1992 havia 1000 (mil!) seminaristas alojados por toda a cidade. Agora a situação mudou: ordens monásticas venerandas, como os Basilianos, que há 10 anos tinham 40 noviços, neste ano têm apenas 6. Os Redentoristas de 25 baixaram para 4.
Problemas com que nos devemos confrontar
– Se a jovem idade dos irmãos é uma riqueza, essa mesma se torna árdua perante os encargos e tarefas de animação e governo.
– é um problema a referência aos sacerdotes casados da diocese: o rito permite que eles possam casar. E os sacerdotes católicos de rito greco-católico casados são 95%. A dificuldade aqui aumenta especialmente se o caminho formativo não ajudar os jovens ucraínos a se abrirem, coisa difícil para eles, vítimas como foram da desconfiança e da suspeita, respiradas no âmbito do regime. Não se fiam completamente: na família estavam habituados a comportar-se de um jeito, na escola de outro. ”Nós por natureza, cultura, hábito, somos mentirosos” – me dizia um deles para explicar o variado comportamento que deviam adotar.
– A comunidade é uma realidade com raízes ainda muito frágeis; a vida cristã e religiosa está ainda amarrada a uma onda emotiva, sentimental e deverá enfrentar problemas de fidelidade vocacional perante as bajulices do bem-estar, do relativismo, e por aí a fora…
– O percurso formativo no exterior, no momento prevalentemente na Itália, mesmo que dure vários anos, nem sempre e a todos consegue permear de salesianidade. Para alguns é apenas um parêntese, ainda que belo; mas depois, voltando à pátria, continuam como antes, sem conseguir assumir e fazer próprias a riqueza e a originalidade salesianas, como se esta excluísse ou contrastasse a cultura e a espiritualidade da pátria.
Neste horizonte situa-se a causa da hemorragia de vocações, em concomitância outrossim com um não-claro discernimento inicial e uma não-sólida base de caminhada vocacional.
Mas por sobre tudo isso – problemas de pessoal, de ambientes, de economia, e outros fatores da jovem Delegação de três anos de vida – rebrilha o arco-íris da esperança. O terreno juvenil como perspectiva está nas mãos dos salesianos, de leste a oeste. Com a queda do regime comunista faltam de todo as instituições educativas estatais, que miravam formar os quadros comunistas: outubristas (5-10 anos), pioneiros (11-15 anos), ‘comsomolkhi’ (16-18 anos).
Também a escola, hoje, não tem condições de ajudar e apoiar: não possui incisividade e credibilidade educativa. A exigüidade da remuneração desmotiva os professores no seu trabalho, os quais procuram outras atividades fora da área educativa, a fim de melhorar o salário.
E agora a Igreja.
Os sacerdotes ortodoxos e greco-católicos são casados: não ganham o suficiente para manter a família. Por isso, além dos empenhos litúrgicos, dedicam-se a atividades mais lucrativas.
Resulta que o campo de trabalho para os salesianos é muito amplo e o carisma de Dom Bosco atrai uma multidão de jovens, afastando-os do perigo da rua, do ócio, do álcool, das drogas, etc.
2. E a notícia inédita é esta.
Além do bispo salesiano emérito e benemérito de quase 90 anos, Dom Andrea Sapelak, nós, ucranianos, temos um bispo clandestino. Desse fato ninguém sabe nada: o seu nome de fato nunca apareceu em nenhum anuário, pontifício ou salesiano. E, novidade ainda mais surpreendente: esse nosso bispo é candidato às honras dos altares. Trata-se do P. Estêvão Czmil: ele guiou o primeiro grupo de jovens ucraínos que em 1932 foram a Ivrea (Itália) e foi também o primeiro salesiano ucraniano de rito oriental: fez os primeiros votos temporários no dia 16 de agosto de 1935.
Ele está no centro de uma façanha excepcional. Eis os fatos. Ligam-se todos àquele grande pai e confessor da fé da Igreja ucraniana mártir que foi o Cardeal Josef Slipij, metropolita de L’viv, Ucrânia (perto da Polônia). A sua libertação, depois de 18 anos de cativeiro nos «gulagui» soviéticos, condenava-o ao mesmo tempo a deixar a pátria e a tomar o caminho do exílio perpétuo. Ele, para prover às necessidades da Igreja, no dia 2 de abril de 1977 consagrou, secretamente e sem mandato papal, três novos bispos, com a finalidade de enviá-los à pátria. A fim de que isso desse resultado, era necessário que ninguém viesse a saber do fato e não vazasse, nem mesmo no Vaticano. Os três sacerdotes escolhidos eram: 1º. Husar Liubomir, arquimandrita do mosteiro ‘estudita’, de Albano. Ele é o atual cardeal, arcebispo maior, título que corresponde ao de patriarca da Igreja greco-católica, e reside em Kiev. 2º. Joan Homa, secretário do cardeal Slipij. Tornou-se a seguir procurador da igreja Ucraniana, no Vaticano. Morreu em 2006. E por último, 3º. o nosso salesiano Stefan Czmil, então colaborador e pessoa de confiança de Slipij, diretor da comunidade salesiana e reitor do Pontifício Seminário Menor Ucraniano de São Josafá, na Via Boccea, aqui em Roma.
A consagração se deu em Castelgandolfo, no mosteiro ‘estudita’, no mais absoluto segredo. Os três ordenados só poderiam exercer o ministério quando chegassem na pátria. A morte improvisa e dolorosa do P. Czmil, ocorrida no dia 22 de janeiro de 1978, fez surgir a suspeita de que ele tivesse sido ordenado bispo. De fato, preparada a câmara mortuária, o corpo fora revestido dos paramentos sacerdotais e da mitra de arquimandrita, título que havia recebido antes de ser consagrado bispo. Entretanto quando o Cardeal Slipij chegou para celebrar a liturgia, mandou que fosse sepultado com todas as insígnias episcopais. Os presentes se perguntavam:”Como assim, se é apenas mitrado?!”. Foi João Paulo II quem o acolheu no colégio episcopal e reconheceu a validade da consagração dos ordenados (1996). Mas o nosso Czmil já havia morrido como bispo incógnito.
Conhecida de todos foi, ao invés, a sua santidade; de modo que agora se deseja iniciar a causa que o leve às honras dos altares. “Os santos têm o gênio do amor”, dizia Bernanos. É esta a virtude que unanimemente lhe reconhecem quantos dele se aproximaram e lhe viveram ao lado.
O tempo não me permite apresentar-vos os traços característicos desse amor que o tornou santo. Basta-me haver-vos revelado essa história inédita, ter suscitado em vós o desejo de saber mais e pedir-vos que rezeis para que nós, ucranianos, possamos ter nele o nosso santo protetor especial e que as suas qualidades brilhem em nós. O Cardeal Slipij disse dele: ”Foi homem de caráter cristalino, e raro pai em Cristo”. Nós desejamos que assim sejam os jovens salesianos ucranianos.
P. RINO PISTELLATO
Delegado