Amigo e irmão, Benjamim.
Nem houve tempo de uma despedida fraterna, mesmo formal. Tudo na discrição como teu estilo.
Escrevo esta cartinha, para que a possas ler, não no teu notebook, mas com teu coração, que espero já iluminado por Deus.
Só agora posso dizer obrigado. Faz anos que nos conhecemos no Pós-Noviciado, em São João Del Rei, MG. Tu, no terceiro ano e eu, no primeiro. Vivemos algumas peripécias em conjunto com os outros colegas, coisas de jovens que viviam o clima de 1968, do “é proibido, proibir”.
Depois novo encontro no Colégio do Carmo, tu recém nomeado Diretor, eu recém ordenado sacerdote e nomeado Animador de Pastoral. Recordas dos versos que o Pe. Grismondi te dedicou na posse do teu diretorado? . Comentar estes versos foi nossa aproximação. Padre novo, cheguei como um furação de idéias e iniciativas. Tu, na tua reserva, olhando para ver “no que aquilo ia dar”. Um embate de estilo: Tu, sempre contido e eu incendiário; tu, ancorado na robusta ( tão robusta que por vezes me parecia pesada demais ) teologia aprendida em Roma e eu, com as provocações da Teologia da Libertação. Sem entender muito das minhas propostas aparentemente loucas, mas dando o maior espaço, sem críticas nem censura. Lá iniciamos a Mostra de Teatro, realizada durante sete anos consecutivos, a Semana da Cultura que se estendia por todo o segundo semestre, para teu desespero, dos professores e dos pais; mas o colégio não entrava em desordem nem bagunça. E veio a Semana de Arte Sacra Estudantil – SASE, exposta nos andaimes de restauração da igreja do Carmo.E aconteceu o “Jejum” (experiência de 26 horas de jejum com 150 jovens do Ensino médio), jovens alojados nos pátios do Carmo, dormindo no chão frio das lajotas do pátio.
Quando o então arcebispo disse que o ‘jejum’ dos jovens era uma temeridade, tu dizias aos repórteres, ”confio plenamente no Pe. Bené. Ele sabe o que faz”. Depois veio o ‘Agito Dom Bosco’, uma forma juvenil de celebrar Dom Bosco; muitos jovens pediam ingressar no Carmo só para participar do ‘Agito’. E as celebrações eucarísticas, nas quais, rindo, sempre me perguntavas se haveria alguma espaço para tii, o presidente da celebração. E os alunos lotavam a velha igreja do Carmo, em participação livre. E o oratório de domingo? Falavas de Dom Bosco, quando um dos pequenos oratorianos te interrompeu,dizendo conhecer tal nome mas ele se referia ao vinho de gosto popular.E então compreendias, feliz, aonde chagavam as minhas loucuras. O colégio num redemoinho e tu, de longe, acompanhando sempre com o olhar atento e por vezes um sorriso discreto, aquele da confiança. Carmo dos três mil alunos, três turnos; trabalho demais levado juntos: tu, eu, Novello, Grismondi e uma excelente equipe de leigos educadores. E à noitinha, ainda tínhamos tempo para sentar no batente de entrada do antigo prédio para comentar o dia, aliviados pela brisa da baia de Guajará.
Conheceste a pobreza de minha família e concedeste bolsas de estudos aos meus sobrinhos. Hoje, profissionais competentes, eles te agradecem o apoio que deste sem qualquer pedido meu. Flávia e Adriana me telefonaram ao saber de tua morte, chorando por ti e consolando a mim. Meus pais, lá no céu, agradecem tuas muitas delicadezas para com eles.
Estes dez anos do Carmo me firmaram a caminhada salesiana sacerdotal. Permitiste que eu ajudasse o ‘Tulipa’ ( Turma de Liderança Paroquial da Sé), compreendeste o convite de Dom Zico para que eu assumisse a Assessoria Arquidiocesana da PJ e depois a PJ Regional. Nada sem deixar de lado o dever do colégio. Sem muitos elogios, mas com teu apoio permanente superei minhas crises dos primeiros dez anos de padre. Foi nestes anos que te conheci como o homem do dever: nada de festa de aniversário de alunos, nada de cinema, nada fora dos deveres de diretor. E eu, o contrário. Pode ser que este sentido de dever tenha te precipitado o fim.
Esta nossa proximidade fez com que nos tratássemos sempre pelo nome: Benjamim, Bené. Diretamente, mas com muita amizade. Assim minha vida foi passando pela tua: foste meu Diretor, meu Inspetor. Fomos colegas de estudos de Filosofia. Fui teu conselheiro. Foste amigo de meus pais, apoio de meus sobrinhos. Tivemos, em comum, muitos amigos leigos, amizades de mais de trinta anos. Laços e laços. Amizade com fraternidade. Cortar laços de repente, fere demais!
De Belém te choram Joaquina, Célio, dona Glorinha, Maria José, Flávio, Raul, Sônia, Emanuel, Emilia, os Rodrigues, dona Remígia e seus filhos, os cindo irmãos Wilton e sua mãe, dona Edna, o dr. Eduardo Braga Filho. A lista não é totalmente elencável.
Sempre te conheci meio arisco, reservado, contido, parecendo ( e às vezes sendo) anti-social, mas deixavas portas abertas para que as pessoas te amassem e chorassem com tua partida inesperada. A Fan Page da ISMA explodiu de mensagens agradecidas: expressões carinhosas e sofridas de muitos e muitas que tu ajudaste no silêncio do teu trabalho. A comunidade de Iauaretê se reuniu, ao tocar do sino da matriz, e lotou a igreja, rezando por ti. Os Ianomame de Maturacá querem teus ossos para realizar aquele ritual que só os parentes e amigos falecidos merecem Benjamim, tua sisudez, não impediu ser amado.
Sabias que não eras unanimidade. Quem bom, assim estás bem situado na galeria de teus predecessores.
Teu velório, irmão-amigo, acolheu tanta gente que, se vivo, tu sentirias algum mal estar por ver tantas pessoas olharem para ti, pronunciando teu nome. E então chegaram doze coroas de flores e elas te velaram a face pálida numa madrugada de chuva fria. Tu, no escuro da madrugada, sozinho, como um indígena solitário remando na frágil canoa, atravessando o rio para a outra margem. E a outra margem é infinitamente distante e sem retorno. A margem onde fica a LUZ.
Lembras daquela frase sobre o “amor escandaloso de Maria Auxiliadora” pela nossa ISMA? Espero que agora vivas, de forma visceral, neste escandaloso amor de nossa mãe. Teu nome figurará por anos em nossos elencos, agora na lista dos plenificados por Deus. Tuas viagens pelo Rio Negro serão retomadas por outros, com renovado entusiasmo e outros métodos. Os novos salesianos indígenas irão rezar em tua tumba, re-significando teu carinho por eles. Vive em Deus e intercede para que caminhemos na luz pela qual te sacrificaste para indicar.
Nada mais de escritório, o permanente lado de tua vida dedicada. Meta laborum!Talvez não te gostes deste novo estilo de vida, mas, amigo, este é o estilo de Deus. Já não tens o múnus do poder, só obedeces. E a ordem de Deus é uma só: amar, amar mais além do que todo teu esforço poderia imaginar ser possível atingir.
Teu irmão, em saudade e lágrimas. E um vazio sem nome.