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A amizade no processo formativo

Fazer amizade, ser amigo é uma condição para saber amar ou o reconhecimento de ser amado? A dúvida nasceu num encontro de formadores no qual eu estava. No mesmo instante veio à minha memória algumas considerações que as interpreto como um sobrevôo na questão. Numa sociedade subjetiva como a nossa a amizade passou a ser uma escolha pessoal e necessária para a pessoa se firmar e se sentir valorizada.


Primeiramente vamos definir o que seja a amizade. Um livro muito famoso chamado O Pequeno Príncipe na narrativa entre a raposa e o príncipe afirma: “quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro”. A amizade seria então a forma de representação deste tesouro. Na amizade existe companheirismo, confiança, sentimento de afeto, respeito, cumplicidade. O tesouro da amizade é saber reconhecer o outro como diferente, mas ao mesmo tempo próximo e significativo; de tal maneira que não temo em manifestar ao outro o que sinto. De fato é precioso ter um amigo.

No vai e vem da história sempre somos surpreendidos por novos comportamentos e valores. As duas grandes guerras, por exemplo, produziram comportamentos de desconfiança entre as pessoas. A dureza da guerra com a experiência da maldade humana por um lado e da fragilidade por outro, gerou um ser humano acuado, amedrontado. A amizade foi afetada, o tesouro foi roubado. Um amigo era uma ameaça. Na verdade ninguém sabia em quem confiar, sobretudo na guerra fria. Se hoje temos os espiões do computador naquela época tínhamos os espiões “amigos” treinados para delatar. Também no período da ditadura no Brasil muitos foram apontados pelo dedo do melhor amigo. A traição se tornou uma forma de defesa e de sobrevivência.


A repercussão desta realidade na vida religiosa foi tremenda. A vida de internato e de poucos contatos com a sociedade levou os religiosos a um estilo de vida no qual não se investia na amizade, mas no grupo como um todo genérico. Não se estimulava ter um amigo de confiança, mas amigos. Todos eram amigos. Proibiam-se as chamadas amizades particulares como matéria de verdadeiro pecado. Quando o religioso sentia que estava conversando mais com outro confrade logo procurava se corrigir rompendo com a amizade. Criou-se assim uma “cultura da amizade objetiva”, quer dizer, ser amigo de todos e nunca de alguém, para evitar qualquer desvio de comportamento, sobretudo no campo sexual. O conceito de bom religioso era aquele capaz de amar a todos, “como Jesus”, de se relacionar com todos, mas sem aprofundar confiança e simpatia com ninguém, muito menos com pessoas externas. Amar a todos sem amar a ninguém. Compreende-se o problema no contexto social e religioso da época.


Com o avanço da modernidade e do existencialismo, sobretudo, do personalismo esta casca de relações sociais começou a se dilacerar. O outro deixou de ser perigo moral, inimigo e, se descobriu o outro diferente e que me completa; alguém com quem partilhar os avanços, as dificuldades, as alegrias e tristezas. A face do outro passou a ser um canal de comunicação. Muito contribui para isto o personalismo cristão e a psicologia humanista. O valor da inter-relação, do crescimento e amadurecimento. Mudou completamente o conceito de ser pessoa. Evidentemente que isto trouxe para a formação dos religiosos grande contribuição. O religioso deixou de ser aquela ilha fria e estática perdida no meio de um mundo de preconceitos. Devolveu-se a “alma” ao religioso como ser de relações e construtor de profundas amizades assim como Jesus que a todos atraia pela força de sua palavra e de seus gestos.


Nos dias atuais a vida religiosa se move numa “cultura subjetiva da amizade”, quer dizer, o religioso se sente mais livre e exortado a fazer amigos. Nunca fechado em guetos, mas aberto a novas realidades. É uma amizade que vai além da ideologia corporativista. A amizade é uma maneira de contribuir com o outro. O mais interessante nisto é que Dom Bosco, que viveu no século XIX, tinha intuído o valor da amizade desde sua adolescência. Ele soube cativar amizades e criou um grupo de amigos para viver a alegria de estar juntos na valorização mútua de todos. Mas o grupo não absorvia o valor de cada individuo e Dom Bosco soube viver grandes amizades na massa, por exemplo, com Luis Comollo. Um jovem seminarista totalmente diferente dele como personalidade, piedade e aspecto físico, mas que sintonizaram com os mesmos sentimentos de crescimento espiritual. Podemos dizer que Comollo foi o tesouro de João na sua juventude e vice-versa. Um amigo simples que inspirava santidade. Agora, existia algo a mais nesta amizade. Ambos cresciam na ajuda recíproca, havia um projeto de superação e de verdade no trato. O erro de uma amizade é pensar que por ser amigo posso deixar o outro para trás com seus erros ou silenciar quando deveria dizer a verdade, porque temo ofender. Amizade é um tesouro porque me ajuda a crescer; no fundo ela não elimina o conflito, mas aprofunda e supera.


A amizade na formação é um instrumento positivo que soma no processo de discernimento vocacional. Quem não é capaz de ter amigos não pode dizer que sabe amar, porque Jesus mesmo chama os discípulos de amigos. Os discípulos se sentiram amigos de Jesus porque foram atraídos a ele pela palavra e não pelo medo. Quem não ama suga dos outros, desvalorizada, se coloca como o centro de tudo, é egocêntrico. Posso até alargar com outro exemplo o valor da amizade na espiritualidade. Por exemplo, a profunda sintonia entre Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, entre São Bento e Santa Escolástica, para não citar outros. Entre esses santos havia uma corrente forte de amizade na experiência do acompanhamento espiritual que os enriquecia. Através das cartas de Santa Escolástica a Bento é possível ver a confiança, o desarme, a certeza de estar partilhando do mais profundo e não ter medo de ser exposta. Isto é amizade pura e consciente. Atualmente ficamos sabendo das correspondências da Beata Teresa de Calcutá com seu diretor espiritual nas quais ela descreve a experiência da ausência de Deus. É uma alma que se abre ao amigo e confidente. Este tipo de amizade amadurece a pessoa. Isto faz falta na relação formativa entre formandos e formadores, entre os próprios formandos e na relação de acompanhamento espiritual. É preciso quebrar as cadeias que nos inibem no medo de não saber amar e ser amado.


Num mundo tão fragmentado nas relações de afeto é preciso ajudar as novas gerações a criar laços afetivos que vai muito além da posse do outro; é preciso formar para a gratuidade total na qual não existem perdas nem ganhos; simplesmente a permuta de dons do tesouro que o outro ser humano é e pode ser.



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